Assistindo a Tecnologia Passar



Pode parecer tolice comentar isso hoje em dia, mas é impressionante o avanço da tecnologia e as mudanças derivadas dela que impactam continuamente em nossas vidas. A geração atual já nasce dentro desse ambiente, devidamente acostumada com um ritmo de evolução ligeiro, sem a mínima noção de que há 30/35 anos atrás as coisas eram muito diferentes. Hoje em dia, mal dá tempo de se acostumar com alguma coisa: logo algo mais avançado surge e te deixa com a impressão que o espaço de tempo entre a novidade e o obsoleto é cada vez menor. Toco nesse assunto pelo simples fato de que, ao assistir um filme neste fim de semana, me veio à tona uma série de memórias do passado e de como as coisas eram muito diferentes. Não me refiro à tecnologia empregada em Hollywood atualmente - isso é notório - me refiro à forma e consequente facilidade de assistir a qualquer coisa hoje passível de ser projetada em uma tela. O que me levou a pensar foi tão somente o fato de que estava assistindo o filme na sala de casa, já tarde da noite. A certa altura, o cansaço bateu, mas a vontade de ver o filme ainda persistia. O que fiz? Desliguei a televisão e terminei de assisti-lo no quarto, no conforto da minha cama, pelo celular. Simples e corriqueiro, não? Caso tivesse ido dormir, o teria feito qualquer outra hora, quando fosse mais conveniente ou desse vontade. Mas no passado não muito distante, não era assim que a coisa funcionava.

Quem já caminha hoje pela casa do 45/50 anos, sabe do que estou falando. O “multi plataforma” de hoje era restrito à trinca Cinema x Locadora x TV Aberta, cada um com suas particularidades e restrições, onde era inimaginável o “On Demand”, onde você assiste o que desejar, onde, como e quando quiser.

A principal, ou melhor dizendo, única “plataforma” (para usar o dialeto de hoje) para se assistir filmes recém lançados eram as salas de cinema. Com isso, vários fatores deveriam ser considerados:

1) Não existia essa coisa de “lançamento mundial simultâneo”. Você tinha de esperar o filme chegar aqui. Traduzindo, estamos falando de semanas ou meses, em alguns casos;

2) Se o filme era badalado, você podia ter a certeza de milhares de pessoas iriam querer vê-lo também. O que isso significava? Filas quilométricas – e cansei de ficar nelas – o que representava algumas horinhas entre você sair de casa e efetivamente conseguir sentar na sala do cinema para ver o tão aguardado filme;

3) Até a popularização dos shoppings centers se tornar efetiva, os cinemas eram de rua. Não era raro você encarar as filas descritas acima tomando um “solzinho”;

4) Salas de cinema top eram “Dolby Stereo”, ou seja: de especial, apenas o som. As telas eram padronizadas e não havia essa variedade de recursos como Imax, 3D, 4DX, Macro XD ou XD;

Passada a exibição nos cinemas, era hora de esperar a chagada do filme nas locadoras, o que representava uma nova etapa de esforço e dedicação, bem diferente dos cliques que damos hoje para assistir qualquer coisa. Para quem não viveu essa época de ouro, locadoras de vídeo representaram um segmento de negócio que foi imenso, mas que está extinto nos dias de hoje. Eram estabelecimentos comerciais inicialmente voltados para a locação de fitas VHS (?) mediante a popularização dos aparelhos de vídeo cassete (??). Posteriormente, com o advento do DVD, atingiram seu ápice no mercado. As locadoras eram alvo da etapa seguinte de filmes e musicais, de um modo geral, após a efêmera temporada nos cinemas. Em alguns casos, determinados lançamentos já eram produzidos e voltados exclusivamente ao mercado doméstico (os “Home Videos”), sem passarem pelos cinemas.

Meses se passavam até que os filmes atingissem as locadoras. Chega a ser curioso quando vemos hoje um filme que acabou de estrear nos cinemas já contar com data de chegada nas mídias físicas (DVD´s e Blu-Rays), nas plataformas digitais e também nas TV´s por assinatura (isso sem mencionar a pirataria via Internet, que hoje em dia garante arquivos com qualidade em alta definição de som e imagem com o filme ainda em exibição). Mas voltando ao passado, depois da chegada no mercado doméstico, era hora da locadora: você tinha de ir lá (isso mesmo, você precisava sair de casa!) para escolher algo para assistir. Você saía de casa com este objetivo de ver algo específico, mas o primeiro entrave surgia, uma vez que havia chance do filme que você ambicionava ver não estar lá, pois já estava alugado. Com isso, começava a árdua busca por uma opção, uma vez que monitorar quando a fita fosse devolvida era outro desafio. Para quem não tem a menor idéia sobre o que estou falando em termos de procura de filmes neste ambiente rudimentar, faço um comparativo: dependendo do tamanho da locadora e guardadas as devidas proporções, era como se o cardápio da Netflix, hoje digital e acessível a um toque, virasse algo físico e palpável, com você olhando capinha por capinha de fita ou DVD.... Numa tentativa de resolver isso, as locadoras recorriam ao expediente de ter uma dezena de cópias dos lançamentos mais quentes afim de atender a demanda. O problema era o pós novidade, onde cópias e mais cópias ficavam nas prateleiras sem a saída de outrora. Além disso, havia pacotes dos mais diversos (“x lançamentos leva x catálogos de brinde”) visando atrair a clientela. Mas o legal mesmo eram os feriados: se você bobeasse e não fosse com antecedência, não encontrava nem documentário do Pantanal para assistir.... Quase me esqueço: na época do VHS, era necessário rebobinar a fita antes de entregar, lembra? Caso contrário, pagava multa.

Para concluir essa batalha pré-modernidade, luta mesmo era esperar o filme passar na TV aberta. Se você não viu o filme no cinema e nem tinha vídeo cassete ou DVD player, a TV aberta era o recurso derradeiro para os menos afortunados. Mas se para quem pagava os prazos já eram grandes, a TV aberta com sua gratuidade era como se fosse um investimento a longo, longo prazo. Esperar as emissoras – Globo principalmente – anunciarem seus investimentos na grade de filmes era um evento dos mais aguardados no fim de cada ano. Lembro que os filmes chegavam com pelo menos dois anos de atraso, justamente por conta do mercado doméstico que mantinha a exclusividade dos lançamentos. Deste modo, se você assistia na TV aberta o inédito “Um Tira da Pesada”, era certo que o “Um Tira da Pesada 2” já estivesse nos cinemas...

A mudança de cenário se deu com a chegada da Internet, que simplesmente conseguiu “matar” esse mercado. A pirataria representou um baque nas locadoras, pois gradativamente transferiu o catálogo delas para as residências das pessoas, e melhor, de graça. A partir do momento em que todo mundo descobriu conteúdo gratuito – embora ilegal – disponível na rede, o mundo das locadoras ruiu. Paralelo a isso, a popularização das TV´s por assinatura e o  advento do streaming sacramentaram o fim delas. Óbvio dizer que os cinemas também sofreram com essa mudança, tendo que se readaptarem para não irem pelo mesmo caminho...

Apesar das dificuldades, o passado guarda um certo charme que hoje está disperso nas facilidades tecnológicas. Não se trata de saudosismo barato, mesmo porque este que vos escreve é um fã ardoroso dos recursos modernos. Entretanto, me sinto feliz por ter participado do processo como um todo, onde a evolução de cada etapa foi devidamente apreciada. Este pequeno relato sobre os desafios dos cinéfilos de antigamente é apenas parte um cenário maior, onde o prazer de pesquisar, buscar, experimentar, sentir e até aprender se perdeu no comodismo dos cliques que nos impendem de sair de casa, simplesmente porque não é mais preciso. O grupo carioca O Rappa tem uma música que diz: “Hoje eu desafio o mundo sem sair da minha casa”. Ela resume bem o mundo atual, embora eu não faça questão de desafiar ninguém: eu já era feliz correndo para entregar a fita na locadora antes dela fechar... 

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