Memórias do Cárcere (ou, Carnaval no Rio de Janeiro)


Antes de qualquer coisa, afirmo que respeito quem curte Carnaval. Mas sequer botei o pé na rua. Apesar do que escreverei nas linhas a seguir, não sou radical contrário aos dias de folia, reservando-me até o direito de, onde quer que esteja, ver os desfiles, que sempre achei duma criatividade ímpar. Entretanto, sempre fiz questão de me afastar o máximo possível do barulho e da confusão gerada por estes dias, que este ano atingiu níveis alarmantes. Paralelo a isso, surpreendeu-me a capacidade que o povo brasileiro tem de se alienar do que quer que esteja acontecendo no país, não abrindo mão dos dias de folia. Infelizmente, esse desligamento da realidade também atingiu os mesmos níveis alarmantes.

Passados os dias de folia que se iniciaram em Janeiro e terminaram no fim de semana seguinte ao Carnaval, ficou um saldo trágico:
- A violência subiu assustadoramente, mesmo numa cidade onde já reinava absoluta por conta da falência do estado e da sua incapacidade de reerguer as forças de combate ao crime pela falta de dinheiro;
- Grande número de turistas na cidade bombardeados pelo caos instaurado;
- Crescimento desordenando de blocos, subdimensionados para as autoridades. Como um exemplo, houve um bloco com expectativa de 20.000 pessoas que recebeu 30 vezes mais (600.000)!
- Ausência total e completa de autoridades: Governador e Prefeito viajando num dos eventos mais importantes e complexos do estado. O primeiro ainda se manteve no Estado, com o segundo escapando para o exterior, novamente numa situação em que sua religião não o permite participar de uma “festa profana”;
- Na quinta feira seguinte à Quarta de Cinzas, um temporal devastou o estado, trazendo o caos para todos os lados: ruas alagadas, deslizamentos, falta de luz (dura até o momento em alguns bairros), vias interditadas. Agravante: o prefeito ainda estava fora e um grupo de tontos o representava, mas com a mesma ineficiência...
- Para completar, a cereja do bolo: uma intervenção federal na segurança pública do estado, anunciada na Sexta – ainda no clima do Carnaval – pelo presidente da república, em resposta ao clima de bárbarie que se instalou no Rio de Janeiro.

Nada disso, absolutamente nada disso foi suficiente para impedir multidões atrás de blocos de Carnaval, desde do raiar do dia, até o amanhecer seguinte, num círculo vicioso de alegria (?). Simplesmente não consigo entender como uma situação tão caótica quanto a nossa não impede as pessoas se espremerem entre milhares de outras para andar atrás de um caminhão enfeitado, tocando música bem alto, com gente pulando em cima e impreterivelmente sob um sol escaldante (essa é a definição técnica de trio elétrico, para quem não sabe). É até natural o pensamento: “Mas as pessoas têm direito a se divertir”, ou então “Esse é o momento de esquecer os problemas e ser feliz”. Concordo, mas abstração atrás de abstração, ano a ano, nos levaram a esse quadro de hoje.

O problema cultural que assola o brasileiro pesa enormemente. O brasileiro nunca se importou com nada a níveis políticos, nunca cobrou ações, nunca exigiu seus direitos, a exceções pautadas pela força do modismo do momento, gerando ações pontuais. Exemplos: os caras pintadas do impeachment do presidente Collor. Movimento de massa, mas sem nenhum embasamento de causa. O importante era todo mundo estar na onda do momento, que era estar na rua, de cara pintada, bradando fora Collor. Tanto que, depois de sua saída, nunca mais foram vistos...Essa apatia cumulativa do povo, intermediada por esses surtos esporádicos de cidadania, gerou um sistema corrupto e ineficiente que nunca teve grandes problemas para se manter. As coisas vêm mudando, é verdade, mas ainda há um longo caminho a se percorrer. 

Voltando ao tema central, o que houve neste Carnaval me deixou perplexo do ponto de vista comportamental das pessoas: o mesmo cidadão que reclama de falta de segurança se arriscava em blocos onde brigas pipocavam a todo estante; o mesmo cidadão que reclama do transporte público para trabalhar, não se incomodou em andar em trens, metrô e ônibus superlotados. Mais especificamente no caso do metrô, como mostrado na televisão, lotado e imundo; o mesmo cidadão que reclama da falta de ética dos seus políticos deu mostras explícitas de falta da mesma ética – cabe aqui um destaque ao icônico cidadão mostrado na televisão urinando numa lata de lixo dentro metrô (!). Resumindo, nenhum dos flagelos do dia a dia do brasileiro, por mais nocivos que sejam, tiveram impacto no período de carnaval. Tudo é “esquecível” em prol da alegria e diversão mandatórios desta época do ano. Mas o mais impactante para mim foi a questão da segurança. Como é possível ignorar que pessoas morrem simplesmente ao andarem na rua, a pé, de carro, no ônibus? Morrem estando dentro de suas casas? Ou na escola? Por balas perdidas, ou em assaltos covardes? Crianças, policiais, qualquer um? A verdade é que as estatísticas alarmantes não foram suficientes para impressionar, uma vez que a necessidade de aproveitar os dias de folia era infinitamente maior.

A ironia da vida é cruel, e ela coroou este cenário de apatia cívica com um temporal de proporções bíblicas, na madrugada seguinte a Quarta Feira de cinzas, que trouxe todos os alienados à realidade: alagamentos, enxurradas, falta de luz em diversos lugares (por dias até), perdas materiais enormes (móveis, mercadorias, carros, alimentos). Quando isso aconteceu, todos se lembraram que o político não fez sua parte, não os ajudou, não construiu a encosta, não construiu uma rede de esgotos, não apareceu depois para prestar suporte, estava viajando a passeio, que fez obras mal feitas e etc. Nesta hora, todos têm o orgulho cívico ferido por terem sido feitos de bobos. O problema é que de bobos eles não têm nada: sábado e domingo depois do Carnaval ainda tinha bloco, onde só a expectativa dos organizadores era de 657 mil espertos.

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